segunda-feira, 20 de outubro de 2008

A Mulher no Amor - Herculano Pires

Em todos os tempos, como já vimos, a mulher foi a grande sacrificada no amor. Colocada em plano inferior na sociedade, nunca teve o direito de amar, pois só lhe cabia e ainda hoje lhe cabe, a função passiva de ser amada. Essa posição a colocou na condição de presa, objeto de conquista. E uma vez conquistada, sua liberdade individual se apagava e ainda se apaga ante os direitos absolutos do marido. De nada valem para a mulher os seus encantos, a sua beleza, a sua inteligência. Mesmo quando, por direitos dinásticos, ocupasse um cargo superior, no âmbito familial estava obrigada à sujeição marital. E por mais que brilhasse a inteligência feminina, a posição da mulher não se alterava, e ainda hoje continua, de uma ou de outra forma, subjugada pelo seu senhor. Este é o grande pecado dos homens, que podem ser acusados, em bloco, de caçadores, carcereiros, dominadores e exploradores da condição feminina.
Os hímens contaram, para impor e manter essa situação injusta, não só com a sua superioridade no tocante à força bruta, mas também com as desvantagens da mulher no tocante ao sexo e às suas funções maternais. O que a moral burguesa (nascida nos burgos feudais) produziu em princípios, normas e exigências, para reduzir a mulher a simples serva do homem, ainda está para ser arrolado e avaliado. Talvez não o seja nunca, porque a escravidão feminina é uma mancha negra na cultura dos povos, e tão espessa que atinge na sua nódoa os dois sexos. Houve, naturalmente, muitos motivos circunstanciais para isso. Mas o motivo central e decisivo foi um só: a arrogância masculina, o complexo de superioridade dos homens, o seu preconceito absurdo e aviltante (para ele mesmo) contra aquelas que são suas mães, filhas, avós, companheiras, irmãs, amadas e mães de seus filhos.
Na pesquisa sobre as condições do amor feminino o que mais espanta é a situação de passividade absoluta a que ela ficou reduzida por milênios na estrutura social. Ser humano como o homem, com todas as condições humanas e todas as exigências psicobiológicas da espécie, foi sempre obrigada a esperar do homem a decisão do seu destino e obrigada a suportá-lo pela vida inteira como sujeita a um decreto divino. O homem aviltou, assim, a condição humana da mulher, aviltando-se a si mesmo.


Entre os vários males que a mulher sofre, decorrentes dessa escravidão e dessa humilhação multimilenar, o que parece mais angustioso é o que chamaremos de crise pré-matrimonial. A jovem adolescente não desperta para o amor com a leviandade insolente do homem. Seu despertar é cheio de inquietações, preocupações, temores, aflições, angústias e desesperos. Porque ela traz em seu inconsciente a determinação genética da maternidade. Não sonha apenas com o seu príncipe encantado. Sonha com os filhos e o lar, com os deveres de mãe, com os inocentes e indefesos que um dia deverão surgir em seu ventre e dele brotar para a vida. Todas as suas aspirações de jovem se centralizam nessa perspectiva maravilhosa, conto de fadas alimentado exteriormente pelos exemplos vivos de estórias caseiras e obras de ficção infantil, bem como pelos objetos de brinquedo: as bonecas, os enxovaizinhos provocadores, os cuidados da mamãe que o instinto infantil de imitação torna fascinantes aos seus olhos ingênuos. O matrimônio se torna para ela uma exigência biológica mais importante que as exigências sexuais. Mas apesar desse determinismo irrevogável, ela nada pode fazer para atingir o seu objetivo, pois tudo depende exclusivamente do homem. Essa situação desencadeia-se na adolescente e acentua na moça o desesperado desejo de casar-se. Para satisfazê-lo, ela só dispõe dos seus encantos pessoais, mas se acaso se atreve a desenvolvê-los e enriquecê-los com os artifícios possíveis, é logo notada e considerada como uma doidivanas, uma leviana que vive se oferecendo aos homens e ferindo a dignidade feminina. Quantos males decorrem dessa situação angustiosa, enriquecendo clínicos no passado e psiquiatras no presente! Por outro lado, se a jovem tem os seus caprichos, como todos os seres humanos os têm, e não como um par entre os possíveis admiradores, é acusada de inconstante e perigosa, talvez marcada como em adultério.

As exigências sócio-morais da sociedade a espreitam e oprimem de todos os lados. Mas ai dela se entregar-se facilmente à válvula de escape das crises inconscientes de perturbações orgânicas ou psíquicas, pois então será classificada como histérica, dominada por distúrbios que poderão tornar infeliz para sempre o pobre candidato que lhe cair nas garras ansiosas. Sua inteligência, sua cultura (só hoje permitida com a parcimônia determinada pelos preconceitos e as restrições financeiras) de nada valem. Ela se sente em igualdade de condições com os que a disputam, mas essa igualdade é apenas uma impressão pessoal, pois nos quadros sociais a sua inferioridade ao homem é a marca de Caim na sua fronte. A homossexualidade feminina é geralmente oriunda dessa situação, uma reação da impotência em que se vê abandonada, um esforço para igualar-se aos homens na desenvoltura, na insolência, nos modos de se expressar, na tonalidade da voz e finalmente nas vestes. Não é tanto a homossexualidade que se define nessas aparências masculinas, mas a crise prématrimonial, o desespero das jovens que não dispõem de meios para vencer as barreiras que a cercam e a isolam, ameaçando-a com o fracasso da sua existência.

E essa crise se agrava, ao invés de aliviar-se, com as licenças que surgem na sociedade industrial em termos de mão-de-obra. As jovens se igualam aos rapazes na capacidade produtiva, na possibilidade de assumir encargos até agora só reservados aos homens, mas isso não diminui a diferença essencial, não lhes tira da fronte a marca de Caim – são mulheres, criaturas submetidas ao poder masculino. Existencialmente essa situação é insuportável, mas elas têm de suportá-la ou arriscar-se a situações talvez mais melindrosas. Carregam pelos dias, meses e anos, o problema insolúvel, à espera do herói que deve salvá-las. Às exigências naturais da sexualidade superpõem-se as angústias da maternidade frustrada, do lar utópico, dos filhos que não podem chegar sem a nódoa da condenação social e moral, acrescida muitas vezes dos temores religiosos cultivados na infância e na adolescência. Paira sobre elas a dupla ameaça da execração familial e da condenação divina.


Numa análise existencial esse problema se complica. Os conflitos que asfixiam essas pobres criaturas nascem de condições essenciais do ser. O anseio de amor, as exigências sexuais, a necessidade de integração social em termos de normalidade sóciomoral e legal emaranham-se no espírito atribulado; ao mesmo tempo, os seres que ainda permanecem como não-seres, no estado limboso da estranha condição da teoria sartreana – atormentam a jovem com sua presença invisível, instigando-a intuitivamente à busca do amor. O que são eles? As pesquisas atuais da Parapsicologia permitem-nos dizer que são espíritos ansiosos pela encarnação, necessitados talvez de um novo nascimento entre os homens. Esse é o não-ser de Sartre, embora o próprio nunca os tenha definido. Esses, os seres humanos de um futuro próximo, que tentam mergulhar na carne através da jovem com a qual possuem compromissos recíprocos oriundos de um passado imemorial.
A angústia existencial sobrecarrega-se com a angústia metafísica dessa carga ôntica ansiosa por se projetar na existência. Entre eles e ela os laços de amor se estreitam dia a dia e elas se desesperam com a interminável espera do parceiro que talvez tenha esquecido ou repudiado antigos compromissos. Por mais que este aspecto do problema possa ser considerado absurdo ou mítico, a pesquisa sobre a reencarnação, nos Estados Unidos, na URSS, na França, na Índia, nos países da órbita soviética, estão hoje mostrando por toda parte que o mistério dos nascimentos não pode ser colocado apenas em termos biológicos. Há mais complexidade no nascimento de uma criança do que o supõem as nossas vãs teorias materialistas. E a sensibilidade feminina, geneticamente ligada a esse problema, é a que capta agudamente o que se passa nos bastidores de cada episódio de introdução de um novo personagem na existência. Não há improvisações nem milagres nos processos da Natureza. E se os houvesse toda a Ciência estaria condenada à falência. Cada jovem casadoura é sempre atormentada pelo dever da maternidade. A maioria das perturbações psíquicas nesse campo provêm de percepções extra-sensoriais de futuras gestais, ainda inseguras a ansiosas quanto ao seu futuro na existência.


O jogo leviano do amor só é leviano para os homens. Quanto compete às mulheres, está sob pressões que a nossa Ciência só agora começa a descobrir com mil dificuldades, em virtude dos preconceitos e da rotunda ignorância que domina os nossos meios científicos. Nada é ocasional nem frívolo nos eventos naturais. Homens e mulheres que se unem por amor ou simples atração sexual assumem compromissos graves e de sérias conseqüências no futuro próximo ou remoto. Mas na Terra são as mulheres que arcam até agora com o peso maior desses compromissos. O que vale dizer que os homens, apesar de sua suposta liberdade nesse sentido, não escaparão da parte que lhes toca.


O amor é em si mesmo um grave compromisso. O ser tem sempre consciência de seus deveres e de suas responsabilidades. O plano existencial é aquele em que esses compromissos se apresentam para o teste da responsabilidade individual. Léon Denis falava da pesada responsabilidade dos homens no mundo. Porque o mundo é a banca examinadora pela qual passam as gerações sucessivas. Os levianos, os irresponsáveis, os que fingem inconsciência para viver à solta, como animais que só buscam alimento e satisfação de suas necessidades vitais, são seres falidos, endividados com as leis naturais de que só querem tirar proveito imediato. Os deuses do passado mitológico não existem mais, não podem mais punir os faltosos com seus azorragues impiedosos, mas as leis naturais nunca deixaram nem deixarão de existir e de controlar os eventos do mundo. Antigamente os sacerdotes exerciam por conta de suas igrejas a função de perdoar pecados, mas hoje apenas os beatos acreditam nisso. A maioria sabe, e sabe de maneira ineludível, que a responsabilidade individual é intransferível, pois cada um de nós é um vetor carregado de explosivos que tem a hora certa e exata para a explosão de suas cargas. Se o ser é a mais alta conquista da Natureza na Terra, este cantinho exíguo do Universo em que fazemos a nossa trajetória existencial, é evidente que tudo o que se refere ao ser, e particularmente aos seus deveres existenciais, que implicam os compromissos da consciência, pesam em nós e no mundo de maneira intransferível.


O homem e a mulher têm funções diferentes na existência, mas deveres e direitos iguais. As funções estão naturalmente sujeitas à conjugação de deveres e de direitos. O amor é o poder de que ambos dispõem para a superação de todas as dificuldades. O amor da mulher é uma doação constante ao mundo e aos homens. A mulher pervertida é uma aberração social, o que vale dizer uma vítima dos homens, que respondem pela organização e orientação da sociedade. Deus, consciência cósmica de que nascem e da qual se projetam em todas as direções as leis naturais, não castiga este ou aquele em particular, nem faz concessões especiais a ninguém. A Justiça Suprema decorre das leis cósmicas e estas estão inscritas em nossa consciência. Qualquer violação das leis é imediatamente punida por suas conseqüências. A liberdade humana é condicionada como a do criminoso beneficiado por sursi. A situação crítica da Terra em nossos dias não foi de terminada por um veredicto de Deus ou de qualquer potência inteligente do Cosmos, mas pelo mecanismo e a dinâmica das leis naturais, que tanto controlam a Natureza como regem os princípios orientadores da nossa consciência.


As jovens de ontem, que eram nossas companheiras de existências passadas, reencontram-se conosco na existência atual e endereçam suas petições aos nossos corações. No Tribunal do Amor há testemunhas e jurados. Muitos deles estão prontos a votar contra nós, mas há também os que nos querem absolver. Poderia algum deles absolver-nos em prejuízo de seus entes amados que aviltamos? A situação caótica, desesperada, do mundo que construímos com nossas ações passadas exige hoje de todos nós uma retomada de consciência diante da realidade irredutível. Temos de rever os nossos conceitos envelhecidos, de encarar a realidade com os novos dados de que dispomos. Não podemos iludir-nos a nós mesmos em nosso próprio julgamento. A Hora do Juízo não soa no alto, entre as nuvens ou as estrelas, mas aqui mesmo, na Terra, em nossa subjetividade existencial.

Fonte:
J. Herculano Pires – Pesquisa sobre o Amor
Editora Paidéia Ltda.
São Paulo / 1998

Imagem: Google